Desbravando a Loucura

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Análise de Sigmund Freud sobre a loucura

Tradição crítica e tradição trágica

Para que se possam recompor devidamente os termos do debate em questão, é preciso começar pela evocação das teses fundamentais que foram sustentadas por Foucault em "História da loucura na Idade Clássica", mesmo que seja de maneira esquemática, para que se possam situar devidamente as diferentes críticas, isto é, a réplica e a tréplica que a polêmica efetivamente produziu ao longo do tempo entre os dois filósofos. Isso porque foi pelo enunciado e pelo desenvolvimento das ditas teses de Foucault que a polêmica se constituiu efetivamente.
COMO indica literalmente o próprio título do livro de Foucault, a sua pretensão nessa obra foi realizar uma leitura da "História da loucura na Idade Clássica", que teria engendrado um efeito de descontinuidade na relação da tradição do Ocidente com a experiência da loucura. Em decorrência disso, Foucault examinou, de maneira esquemática, tanto o tempo histórico anterior à ruptura em questão quanto os desdobramentos engendrados pela dita ruptura na modernidade, de forma MAIS longa e minuciosa. Compreende-se facilmente, portanto, porque o livro de Foucault tenha sido considerado monumental por Derrida, dada a envergadura teórica do projeto que FORA realizado. Enfim, o projeto teórico de Foucault não era empreender uma História da psiquiatria, mas uma História da loucura, na qual aquela se inscrevia no campo desta, estando justamente aqui a sua originalidade.
Assim, na leitura de Foucault, a descontinuidade em pauta centrar-se-ia na constituição histórica que foi estabelecida pela oposição entre os REGISTROS da razão e da desrazão, isto é, em uma divisão primordial que se teria produzido no próprio campo da razão e pela qual esta teria colocado a desrazão como lhe sendo exterior e estrangeira, excluída que fora do campo do seu território simbólico de pertencimento. Isso implica dizer que a experiência da loucura foi excluída dos registros do sujeito e do pensamento, não podendo mais ter a pretensão de engendrar algo que seja da ordem da obra. Vale dizer, a loucura como desrazão foi efetivamente excluída do registro da verdade (Foucault, 1972, pp. 56-59).
Portanto, se durante a Idade Média e o Renascimento existia ainda um reconhecimento simbólico de que a loucura poderia dizer a verdade, que tinha como contrapartida a circulação social e geográfica dos loucos no território europeu, esse reconhecimento e essa circulação social foram interrompidos no FINAL do século XVI e no início do século XVII. Com efeito, uma transformação radical se produziu, então, que delineou um outro destino para a experiência da loucura no Ocidente, na qual esta passou a ser configurada como ausência de obra (Foucault, 1972, pp. 13-55).
Foi essa transformação crucial que teve a radicalidade e a dimensão de ser um efetivo acontecimento na tradição ocidental, pela descontinuidade que produziu nesta. Por isso mesmo, foi a condição histórica de possibilidade para a emergência de outros acontecimentos históricos que modularam posteriormente a História da loucura no Ocidente.
A indagação que se impõe é o que estava em pauta nesse acontecimento inaugural e originário, afinal das contas, que redimensionou o lugar e a posição da experiência da loucura em nossa tradição?
A constituição de Hospitais Gerais (França), de Workhouses (Inglaterra) e de Zuchthäusern (Alemanha) se deu, ao mesmo tempo, pela exclusão de todos aqueles que ameaçavam de alguma maneira a ordem social (Foucault, 1972, pp. 56-91). Assim, por meio das "Lettres de cachet" (Foucault, 1972), o Rei afastava definitivamente do espaço social todos os personagens que representavam uma ameaça efetiva para a ordem social e que eram então considerados perigosos. Com efeito, dos mendigos aos depravados, passando pelos vagabundos, pelos blasfemadores e pelos loucos, uma ampla massa da população foi assim sistematicamente excluída do espaço social.
A finalidade de dita exclusão social não era absolutamente de ordem médica, mas se inscrevia nos registros político, repressivo e moral (Foucault, 1972), ao mesmo tempo. No interior dessas instituições os excluídos eram submetidos não apenas a uma vigilância permanente, mas também ao imperativo severo do trabalho (Foucault, 1972, pp. 92-123), na aurora histórica do capitalismo mercantil (Foucault, 1972).
Portanto, os loucos se inseriam num campo e num conjunto evidentemente bem mais amplo, constituídos que eram por tudo aquilo que representava a periculosidade social. Esta condensava assim o mundo simbólico do Mal. Daí por que a construção dos Hospitais Gerais na França, assim com de suas versões inglesa e alemã, se realizou efetivamente nos antigos espaços sociais dos leprosários, que eram a representação maior do Mal e da morte na Idade Média (Foucault, 1972, pp. 13-55). Foram assim reconfiguradas com os novos excluídos, com efeito, as novas faces terroríficas assumidas então pelo Mal e pela morte na tradição europeia.
Ao lado disso, no entanto, Foucault enunciou a constituição correlata do discurso filosófico de Descartes COMOo Outro dessa renovação política e institucional, que implicava também um campo de novas práticas sociais (Foucault, 1972, pp. 56-59). Estaria justamente aqui a ousadia teórica proposta por Foucault ao inscrever uma construção filosófica no campo de uma transformação histórico-social mais abrangente, no qual aquela seria o correlato desta. Além disso, não se tratava de um discurso filosófico qualquer e menor, COMO se sabe, mas, pelo contrário, tratava-se do discurso fundante da modernidade filosófica. Isso porque, pelo discurso filosófico que enunciou, Descartes colocou em questão o sujeito em todas as suas certezas anteriores, para supor que, pela experiência da dúvida radical, pudesse finalmente aceder à verdade pela certeza assegurada pelo pensamento.
Assim, na leitura original proposta por Foucault, a constituição do campo da razão implicou a exclusão correlata e simultânea do REGISTRO da desrazão, de forma que, na demonstração do cogito - empreendida na primeira "Meditação" realizada por Descartes (Foucault, 1972) -, o sujeito da meditação teria excluído a experiência da loucura do campo do sujeito. Vale dizer, Descartes teria considerado de maneira diversa, na economia simbólica de sua demonstração teórica, as experiências da sensorialidade, do sono e do sonho, da experiência efetiva da loucura, delineando então uma assimetria entre esta e aquelas para o sujeito (Foucault, 1972). Enfim, para enunciar de maneira triunfante o filosofema "penso, logo existo", o sujeito teria assim excluído COMO possibilidade efetiva a experiência da loucura, na medida que esta foi então definitivamente colocada no registro da desrazão.
Nessa perspectiva, os diferentes personagens que foram excluídos do espaço social e alocados nos Hospitais Gerais, entre os quais os loucos, constituíram o mundo da desrazão propriamente dita, de maneira que entre os registros da desrazão e da periculosidade social um laço inédito foi então forjado, de forma indelével, na tradição ocidental. Portanto, o universo da desrazão passou a atrair sobre si um olhar perscrutante de vigilância, que passou a se realizar desde então de maneira sistemática pelo poder, delineando para o universo da desrazão um campo de práticas sociais de regulação, que se iniciava pela exclusão efetiva nos Hospitais Gerais.
Constituiu-se assim, desde então, uma tradição crítica sobre a loucura, que seria completamente diferente de tudo o que lhe precedeu historicamente, de forma que a experiência da loucura como desrazão passou a ser considerada como marcada fundamentalmente pela concepção de ausência de obra. Com isso, a figura do louco não teria o estatuto do sujeito e não poderia aceder ao registro da verdade, pois estaria excluída do campo do pensamento (Foucault, 1972).
Ao lado dessa tradição crítica sobre a loucura, que foi certamente dominante no Ocidente, constituiu-se em contrapartida uma outra, periférica e marginal, denominada por Foucault de tradição trágica. Nesta, com efeito, a experiência da loucura se inscreveria no campo da verdade e seria a condição de possibilidade para a produção efetiva de obra. Não teria sido isso que teria ocorrido na literatura (Hölderlin, Nerval, Russell), na dramaturgia (Artaud, Strindberg), na pintura (Goya, VAN Gogh) e na filosofia (Nietzsche) (Foucault, 1972, pp. 531-557)?
Posteriormente, com a desconstrução efetiva dos Hospitais Gerais, os registros da loucura e da criminalidade foram então definitivamente separados, forjando-se a partir daí as modernas instituições asilar e prisional, no final do século XVIII. Foram constituídos, assim, o alienismo, inicialmente, e a psiquiatria, posteriormente, como herdeiros efetivos da tradição crítica sobre a loucura (Foucault, 1972, pp. 483-530). A leitura desta como ausência de obra se manteve incólume, contudo, de forma que a loucura passou a ser interpretada desde então no registro médico da enfermidade, configurada que foi como doença mental. Enfim, foi apenas nesse contexto histórico que a loucura foi efetivamente medicalizada, passando a ser regulada pela razão psiquiátrica.
Assim, os discursos da psiquiatria e da psicologia teriam objetivado o ser da loucura, mantendo o silêncio sobre a experiência desta, que FORA iniciada na Idade Clássica e na dita tradição crítica, de maneira que naquela não existiria nem sujeito e tampouco verdade. O positivismo, que FORA epistemologicamente constitutivo dos discursos da psiquiatria e da psicologia, legitimara a objetivação cientificista da experiência da loucura, relançando agora em novas bases epistemológicas a oposição entre os REGISTROS da razão e da desrazão, inaugurado historicamente pela filosofia de Descartes (Foucault, 1972, pp. 531-557).
Outra hipótese ousada de Foucault, nessa obra seminal sobre a História da loucura, foi inscrever a psicanálise na tradição crítica sobre a loucura, em continuidade, pois, com a recente leitura psiquiátrica sobre esta. Com efeito, no contexto histórico da França, marcado então amplamente pelo discurso teórico de Lacan, que sustentava a ruptura epistemológica entre os discursos psicanalítico e psiquiátrico, Foucault sustentava a tese oposta, qual seja a existência da continuidade efetiva entre esses diferentes discursos teóricos sobre a loucura. Portanto, após ter esvaziado o gesto teórico e humanitário de Pinel, constitutivo da psiquiatria, no reconhecimento que foi realizado da loucura COMO doença mental, inscrevendo-o decididamente na tradição crítica sobre a loucura, Foucault enunciou que a psicanálise se inscreveria na estrita continuidade dessa tradição, em conjunção com a psiquiatria (Foucault, 1972, pp. 433-530).
De que forma Foucault enunciou esta hipótese teórica inesperada? Qual seria o seu argumento crucial para sustentar tal formulação radical?
Segundo Foucault, Freud teria compreendido devidamente que o funcionamento hierárquico do sistema asilar e do tratamento moral se sustentava em última instância no poder do médico, de maneira que Freud abriu mão efetivamente dos guardas, dos vigilantes e dos enfermeiros da instituição asilar, para centrar a totalidade da experiência psicanalítica na figura do analista. Freud teria constituído assim a situação psicanalítica, centrada natransferência, pela qual as alienações e desalienações da figura do analisante passariam agora inevitavelmente pela figura do analista (Foucault, 1972). COMO um taumaturgo, enfim, o lugar e a posição do analista na situação analítica estariam então em franca continuidade com a posição e o lugar estratégico da figura do médico no campo do tratamento moral e das demais práticas da instituição asilar.
Contudo, Foucault delineou também um outro lugar para Freud e para a psicanálise na leitura que realizou da História da loucura, bem diferente dessa que acabei de enunciar, e até mesmo oposta. Assim, ao se referir a certas concepções sobre a loucura na Idade Clássica, na qual a loucura era inscrita nos campos da linguagem e do discurso, Foucault afirmava que afinal das contas seria preciso "fazer justiça a Freud", pois ele teria inscrito a experiência da loucura nos registros da linguagem e do discurso (Foucault, 1972, pp. 359-360). Referia-se, assim, às diversas leituras clínicas realizadas por Freud, às publicações deste de narrativas clínicas psicanalíticas (Freud, 1911/1975), mas principalmente à interpretação forjada por Freud para a psicose de Schreber, para a qual propôs uma leitura crítica do delírio, no qual este foi decisivamente inscrito no REGISTRO da linguagem e no campo do discurso (Freud, 1911/1975, pp. 163-324).
Existiriam, assim, duas leituras de Foucault no que concerne ao lugar da psicanálise na História da loucura: uma pela qual a psicanálise se inscreveria na tradição crítica, e outra pela qual se inscreveria na tradição trágica. Certamente, a inserção da psicanálise na dita tradição crítica é a mais importante no corpo da obra e de seu sistema argumentativo, sendo esta a interpretação que permaneceu efetivamente de sua obra para a posteridade. Porém, é importante evocar a existência de tal duplicidade de leitura, pois Derrida iria evocá-la amplamente em sua leitura crítica de Foucault.

 Arqueologia do silêncio


O projeto teórico de Foucault, na reconstrução de uma efetiva História da loucura, visava assim dar voz à experiência da loucura, para deslocá-la do registro do silêncio, ao qual essa experiência fora efetivamente alocada pela dita tradição crítica sobre a loucura. Por isso mesmo, Foucault denominou o seu percurso teórico de uma arqueologia do silêncio (Foucault, 1972, pp. 14-55), para indicar todos os momentos, tempos e reflexões nos quais o silêncio da experiência da loucura fora ativamente engendrado na tradição ocidental.
Ao denominar o seu percurso teórico de arqueologia, Foucault definiu a direção metodológica da pesquisa que então iniciara e que perduraria até o FINAL dos anos 1960. Em relação a esse conjunto de investigações, Foucault enunciou que realizava uma arqueologia de saber e não uma História das ciências, tal como intitulara a sua reflexão teórica e metodológica sobre o seu percurso num livro publicado em 1969. Esse livro foi justamente intitulado de "Arqueologia do saber" (Foucault, 1969). Com efeito, ao lado da arqueologia do silêncio, sobre a experiência da loucura, Foucault realizou uma arqueologia do olhar médico, em "Nascimento da clínica" (Foucault, 1969), e uma arqueologia das ciências humanas, em "As palavras e as coisas" (Foucault, 1966).
Contudo, seria justamente a possibilidade teórica de realizar uma tal arqueologia do silêncio, no registro da experiência da loucura, que foi contestada radicalmente por Derrida em sua leitura inicial do livro de Foucault. Com efeito, se a loucura seria ausência de obra, como magistralmente a definiu Foucault com propriedade, não seria possível a realização da arqueologia de uma obra que seria ausente e inexistente ao mesmo tempo, pois o dito silêncio não deixaria qualquer traço e rastro (Derrida, 1966, pp. 51-52). Portanto, diante dessa ausência de signos de obra e do correlato silêncio abissal, pretender empreender uma arqueologia do silêncio da experiência da loucura seria, então, um projeto eminentemente "louco", formulou incisivamente Derrida (Derrida, 1966, p. 56). Enfim, o projeto teórico de Foucault de esboçar a dita arqueologia do silêncio não teria então qualquer sentido.
No entanto, a leitura crítica de Derrida, em "Cogito e história da loucura", se centrou basicamente na análise das três páginas em que Foucault examinou, em "História da loucura na Idade Clássica", a primeira "Meditação" de Descartes. O restante dessa obra de Foucault, de cerca de seiscentas páginas, praticamente não interessaram a Derrida em sua leitura, na medida em que para ele o fundamento do projeto filosófico de Foucault estaria condensado nessas poucas páginas, em que a oposição entre os registros da razão e da desrazão FORA situada por Foucault tanto COMO fundante da filosofia moderna quanto como decisiva na constituição da tradição crítica sobre a loucura (Derrida, 1966, p. 52).
Nessa perspectiva, o que Derrida enunciou literalmente foi que a leitura de Foucault da primeira "Meditação" de Descartes era falsa e inconsistente. Assim, Foucault não teria lido rigorosamente o texto de Descartes, cometendo erros primários de interpretação. Além disso, Foucault teria deduzido dessa leitura de Descartes um conjunto de desdobramentos históricos e sociais que seriam também equivocados. Finalmente, Foucault pretendera indicar a existência de diferença de leitura do LOGOS, anteriormente à constituição do cogito cartesiano, como inteiramente diferente da que fora enunciada por Descartes, o que seria também inconsistente na interpretação de Derrida.
Assim, antes de analisar propriamente a leitura de Foucault sobre a primeira "Meditação" de Descartes, Derrida voltou-se inicialmente para uma questão preliminar, qual seja para a maneira pela qual Foucault situou teoricamente a descontinuidade produzida pela filosofia de Descartes na tradição do LOGOS, que já teria se iniciado na filosofia antiga. No que CONCERNE a isso, Derrida contestou também radicalmente, com efeito, a leitura proposta por Foucault.
Nessa perspectiva, para a interpretação proposta por Foucault, não teria existido na tradição pré-socrática qualquer oposição no interior do campo do logos, de forma que este não seria marcado pela divisão e, portanto, não seria atravessado por contrários. Nessa perspectiva, a dita oposição teria se produzido apenas posteriormente no campo do logos. Portanto, essa posteridade da oposição e da divisão no registro do logos seria assim historicamente constituída, segundo Foucault. Com isso, a constituição do logos socrático já teria ocupado, na Antiguidade grega, um lugar estratégico na tranquilização da divisão no registro do logos, já que uma harmonia já teria se enunciado nesse registro (Derrida, 1966, pp. 63-67).
Derrida indica, então, no que CONCERNE a isso, como a leitura teórica de Foucault seria problemática, na medida em que seria profundamente marcada pela leitura ontológica de Heidegger da Grécia pré-socrática, que se realizou pela mediação da filosofia de Nietzsche (Derrida, 1966, pp. 66-70). Para Derrida, portanto, existiria aqui uma impossibilidade teórica radical ao pretender conceber a existência do campo do logos no qual este não fosse desde sempre atravessado pelos contrários (Derrida, 1966), como enunciara Foucault.
Dessa maneira, a crítica formulada por Derrida é de que a inserção histórica da ruptura e da divisão do logos apenas na Idade Clássica, como pretendia a hipótese fundamental enunciada por Foucault, não teria qualquer sentido, pois a divisão da razão em face da desrazão teria marcado radicalmente a totalidade da história da razão desde a Antiguidade grega pela constituição originária da filosofia (Derrida, 1966, pp. 67-70). Em decorrência disso, se a historicidade se iniciou efetivamente com o advento da razão, conforme afirmara a leitura bem fundada e acurada de Foucault, essa historicidade não se teria constituído apenas na Idade Clássica, pois a historicidade se confundiria com o próprio advento do logos na Antiguidade. Enfim, o conceito de historicidade não se identificaria com a concepção de historicismo (Derrida, 1966, pp. 69-70), sendo este um dos equívocos cometidos pela leitura empreendida por Foucault.

Dúvida natural e dúvida hiperbólica


Assim, foi pela consideração dessas questões preliminares que Derrida considerou como basicamente errada a leitura que Foucault realizara da primeira "Meditação" de Descartes. Tal leitura contrariava, com efeito, a tradição dos intérpretes de Descartes (Derrida, 1966, p. 74), contrapondo-se, assim, radicalmente à tradição filosófica.
No que concerne a isso, qual foi o cerne do argumento teórico sustentado por Derrida? O que enunciou sobre isso?
Nada MAIS nada menos de que seria preciso separar na dita "Meditação" de Descartes a existência de dois tempos radicalmente diferenciados, que forjariam duas modalidades diferentes de dúvida. Assim, seria preciso diferenciar a dúvida natural e ingênua?, que foi a que Foucault analisou efetivamente no seu texto, da dúvida metafísica e hiperbólica, pela qual com a intervenção da figura do Gênio maligno, Descartes não afastaria a experiência da loucura, como realizara no tempo inicial da dúvida NATURAL (Derrida, 1966, pp. 75-81). Portanto, no tempo da dúvida NATURAL, Descartes procedeu de forma pedagógica, introduzindo a figura do não filósofo no corpo do texto, no qual a possibilidade da loucura teria sido então afastada. Contudo, no tempo da dúvida hiperbólica, a possibilidade da loucura foi trazida de volta, de maneira radical, pelo destaque conferido agora à figura do Gênio maligno (Derrida, 1966, pp. 81-92).
Nesta perspectiva, se o silêncio e o murmúrio não articulado como linguagem seriam os signos insofismáveis da experiência da loucura, que seria por isso mesmo ausência de obra, em contrapartida a razão como LOGOSse confrontaria permanentemente com a desrazão, num confronto que seria insistente e sempre recomeçado. Seria, assim, por esse viés que o logos produziria sempre sentido, no campo da linguagem, numa reflexão do domínio da razão sobre o registro da desrazão. Portanto, a tensão e o conflito marcariam então desde sempre o trabalho da razão sobre o fundo permanente do não sentido, que estaria presente na experiência da loucura, desde a tradição grega, de forma que a produção de obra, como linguagem e sentido, seria uma criação insistente da razão contra a ausência de obra e o silêncio da loucura (Derrida, 1966, pp. 88-95).

Alice no país da loucura - Sigmund Freud


Comentário de Paulo Ghiraldelli sobre a obra de Erasmo de Rotterdã




terça-feira, 18 de novembro de 2014

Interpretações de loucura em Michael Foucalt

Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta aterritorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (Foucault, 1972, p. 12).
A loucura passa a ser tema principal da literatura, do teatro, enfim, das artes como um todo. Neste espaço, o louco não é visto mais como uma figura boba, e sim como o detentor da verdade (Foucault, 1972, p. 14).
Na segunda metade do século XV, com as guerras e as pestes assolando as cidades sem controle, o tema da morte reina e ninguém escapa. Entretanto, nos últimos anos do século, a loucura substitui a morte, e é esta ascensão que indicará que o mundo está mais próximo do que se pensa do seu desastre.
Inúmeras imagens, telas, quadros, com faces enigmáticas de difíceis compreensões, surgem. A imagem dá margem a diferentes interpretações. Daí o fato de ela e a palavra expressarem diferentes significados. Essas imagens surgem através dos sonhos, e por isso exercem tanto fascínio através dos tempos. A loucura representada é vista como um saber obscuro, que esconde segredos e que por isso mesmo precisam ser desvendados.
Na Idade Média, a loucura divide sua soberania com mais doze fraquezas da alma humana, como luxúria, discórdia e outras. No entanto, na Renascença, a loucura passa a dominar todas as fraquezas humanas. Isso porque a loucura é visível, não esconde nada, não obscurece; ela atrai as pessoas pelo fato de conseguir manter uma dominação sobre as coisas.
A loucura faz um sarcasmo do saber. Segundo Erasmo de Rottterdam (apud Foucault, 1972, p. 24), pelo fato de a loucura ser uma fraqueza humana, “ela é um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo”. A partir do momento que o homem se apega a si mesmo, ele se ilude, surgindo, então, o primeiro sinal da loucura. A loucura aparece como uma suposição para esta ignorância humana. Ela não diz respeito à realidade do mundo, mas sim à realidade que o homem acredita existir.
No século XV, a loucura aparece como sátira moral na Literatura e Filosofia. O mundo é facilmente dominado pela loucura. Tanto Bosh quanto Brueghel (apud Foucault, 1972, p. 25) tinham uma visão muito próxima da loucura – levando-os a fazer uma reflexão moral a seu respeito, isto porque ela estaria ligada ao homem, com suas fraquezas, sonhos e ambições (Foucault, 1972, p. 24). Já Erasmo (apud Foucault, 1972, p. 26) via a loucura estabelecendo uma certa distância, distância esta que permitia uma visão mais crítica. (Foucault, 1972, p. 26) As pinturas de Bosh (apud Foucault, 1972, p. 26) são pinturas que mostram e revelam a essência dos homens, o homem visto através do seu interior. Com o silêncio das imagens, a loucura desenvolve seus poderes.
Erasmo, com sua tradição humanista, afirma a existência da loucura através do discurso. Este discurso seria expresso através da consciência crítica dos homens. Com isso, “o homem era confrontado com a sua verdade moral, com as regras próprias à sua natureza e à sua verdade”. (Foucault, 1972, p. 27)
Por conseqüência, enquanto esta visão crítica ia fortalecendo-se, a visão trágica ia enfraquecendo-se, embora nunca tenha deixado de existir – como se pode comprovar nas obras de Sade, Goya e Freud. Esta visão crítica ganhava força através da racionalidade, ao passo que a visão trágica se enfraquecia devido à carga emocional empregada. Dessa forma, a razão se tornou predominante sobre a emoção.
A loucura, até o final do século XVIII, teve existência relacionada com a razão. Elas estavam extremamente implicadas. Esta se integrava na razão podendo até ser uma forma de sua manifestação. A loucura levava à sabedoria, e a razão toma consciência da loucura. A loucura é a “força viva e secreta da razão” para os renascentistas, por exemplo. (Foucault, 1972, p. 31)
No século XVII, em Cervantes e Shakespeare (apud Foucault, 1972, p. 39), a loucura sempre ocupa um lugar extremo no sentido de que ela não tem recurso. É uma loucura que opera sobre a morte, que precisa da “misericórdia divina” (Foucault, 1972, p. 39). No entanto, a loucura ainda triunfará, pois a morte não trouxe a paz.
Após abandonar estas regiões em que estava situada, a loucura passa a ser relacionada com a aparência de um crime. Sua seriedade dramática só existe na medida em que se trata de um falso drama. “A partir dela, a ilusão se desfaz” (Foucault, 1972, p. 40). Esta é a troca do real pelo ilusório.
A loucura é capaz de levar as pessoas a desenvolver uma falsa percepção dos sentidos, levando a crer que determinadas partes do corpo não fazem parte do corpo do insano. Assim, é importante ter consciência do conceito de loucura e se o indivíduo é ou não louco, não bastando ter um pensamento lógico e coerente se ele não acredita que é são.
Descartes, através da sua dúvida metódica e de seu subjetivismo transcendental, mostra a razão pura como meio de se chegar à verdade, alocando a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro (Foucault, 1972, p. 45). Para ele, um ser que cogita (pensa) não pode estar louco. Dessa forma, para ele, que submete tudo à dúvida, até mesmo os próprios sentidos, chega à conclusão de que não é possível duvidar do pensamento: “Penso, logo existo”. Assim, se duvido, não posso estar louco, pois duvidaria de minha própria loucura. Esta dúvida metódica fez com que na dialética razão-não-razão (século XVII) a vencedora fosse a razão.
A partir do século XVIII, a loucura está fora da interlocução com a razão. Por isso, o homem da contemporaneidade deixou de se comunicar com o louco. Assim, a ciência a transformou numa patologia. Para ela, quem percebia o verdadeiro, a essência das coisas, estava longe de ser um insensato. E o louco era desprovido destes atributos. A exclusão topográfica foi substituída pela exclusão lógica. Para exercer sua cidadania no seu território, só há duas alternativas ao louco: zanzar pelos rios e mares ou ser confinado sob grade. E agora, de explosão expressiva na Literatura, passa a ser silenciado na sua voz inefável. Não tem o que dizer.
O século XVII chega com a criação de uma quantidade bastante razoável de casas de internamento. Muitas pessoas são enviadas para estas instituições. Assim, a loucura podia ser mais bem percebida através da quantidade de internamentos. Nestes locais, os insanos tinham péssimas condições de vida, viviam em condições subumanas, em locais sujos, frios, lotados de gente e sem comida. Para que fosse internado, o insano não dependia da idade, nem do sexo, nem se seu caso fosse curável ou não.
Era dever dos hospitais dar não apenas atendimento médico aos insanos, mas também ter o direito de decidir por eles e julgá-los, quando necessário. Logo no início, a instância da ordem era ligada ao poder real. Aos poucos, este poder foi concedido à burguesia.
Pode-se então concluir que, para o louco, há exclusão topográfica, exclusão lógica e exclusão política. Sem chão, sem razão e sem cidadania. Na Inglaterra, para manter as casas de correção, a população ajudava com donativos, embora estes não surtissem efeito. Algumas empresas privadas passaram então a ter o domínio sem ter de pedir permissão para abrir mais casas.
No fim do século XVIII há um total de 126 (cento e vinte e seis) casas de correção na Inglaterra. Anos depois espalham-se por toda a Europa. A própria população ajuda a isolar os insanos, segregando-os e atribuindo-os uma nova pátria. O internamento aparece como algo desumano, onde revela que os insanos não podiam responder por si mesmos – já que, por serem loucos, não tinham consciência dos seus atos; eram predestinados.
Segundo o Protestantismo de Lutero, as obras de caridade levavam à salvação porque com elas todos os pecados podiam ser redimidos. As instituições que recebiam estas doações (porque elas não iam para o clero) tinham administradores que geravam as finanças. Estas instituições representavam um castigo moral da miséria, porque esta era considerada como uma desordem quanto à ordem estabelecida. Esta filosofia protestante tinha a intenção de colocar o trabalho num local rivilegiado: o trabalho como sendo fundamentado e comprovado pela fé.
Esta concepção foi tão disseminada que a Igreja Católica logo se viu impelida a aplicar os conceitos protestantes a sua religião. Assim, esta adotou uma percepção da miséria já desenvolvida pelo Protestantismo, dividindo os miseráveis em dois grupos:
– Região do bem e da pobreza submissa, que aceita o internamento e encontra o seu descanso.
– Região do mal e pobreza insubmissa, que recusa o internamento. “Uns seriam filhos de Deus enquanto outros do demônio” (Foucault, 1972, p. 61).

terça-feira, 11 de novembro de 2014

FUGA DA CAVERNA

                                    

Abandonando o modo comum de consideração das coisas, o homem torna-se o
sujeito puro do conhecimento, que, segundo Schopenhauer, é capaz de apreender os
objetos fora de suas relações com tudo o que é exterior a eles, justamente por ver a
essência do objeto que está expressa em todas as suas relações possíveis, e de onde
todas elas partem. O conhecido não é mais a coisa particular, mas a Idéia, a forma
eterna e imutável desse objeto, que é verdadeiramente em todos os tempos e lugares, de
acordo com a doutrina das Formas (Idéias) de Platão. Esse modo de conhecimento é
puramente intuitivo, encontrando-se em oposição direta ao conhecimento mediado por
conceitos, ou seja, o conhecimento abstrato ou racional. Logo, é no domínio intuitivo
que encontramos as Idéias platônicas, que são utilizadas por Schopenhauer para
designar os diversos graus da Vontade, nos quais sua essência se manifesta,
constituindo todo o mundo como representação do qual possuímos conhecimento. São
essas Formas (as Idéias), e não as suas cópias (os fenômenos particulares), que serão
apreendidas no novo modo de conhecer apresentado, que é o conhecimento estético. No
§ 36, vemos que a obra de arte traz à luz as Idéias, as formas essenciais dos fenômenos
que chegaram ao gênio através da pura contemplação intuitiva, e que, totalmente
isoladas, tornam-se representantes de um todo.
A capacidade de retirar do mundo o essencial e torná-lo objeto da arte é
característica do gênio, embora a capacidade de contemplar tais Idéias (através de suas
cópias apresentadas pelas obras de arte ou pela própria natureza) se encontre distribuída
em todos os homens, mas em graus bem menores, segundo Schopenhauer. Por isso, para
o indivíduo comum, é mais fácil ver algo das Idéias na arte do que na natureza, pois na
observação de um quadro ou escultura, não se volta para seus interesses e para as
relações que a obra de arte possa ter com seu querer, mas é impelido, de certa forma, a
contemplá-los de maneira desinteressada. Essa dificuldade em observar uma obra
através de um olhar interessado se daria devido ao fato de que o único objetivo da
criação artística verdadeira é comunicar as Idéias que foram apreendidas pelo criador.
Os homens comuns, que, em oposição aos gênios, são destituídos de uma maior
inclinação para a contemplação intuitiva, não conseguem encontrar nas obras de arte
alguma utilidade, pelo menos não com a mesma facilidade com a qual encontrariam um
uso para as coisas que lhe são oferecidas pela Natureza.